Tranças, ancestralidade e resistência

01-04-2021

Mais que um simples penteado, que ser diferente, "exótico", em cabeça de gente preta, tranças guardam poder e gritam existência

Manipular o cabelo com tranças é uma técnica histórica, presente em muitas nações africanas. O princípio é simples, único, entrelaçamento de três mechas de cabelo a partir do couro cabeludo. Mas o simbolismo vai além do movimento e da beleza, representa poder, luta, resistência ostensiva, informação, sistema de linguagem.

As tranças existem desde antes de Cristo (a.C.). Difícil dizer há quantos mil anos. Mas Cleópatra - negra que teve sua cor roubada -, que viveu entre 69 a.C. e 30 a.C, esbanjava sua riqueza fazendo tranças até com fios de ouro - no Antigo Egito, as tranças eram um modo de os poderosos ostentarem sua condição econômico-financeira.

Embora seja forma de arte e moda feminina, sempre foi usada por homens em algumas regiões da África. Os homens do tempo de Cleópatra, por exemplo, trançavam a barba para indicar proximidade, proteção das divindades mitológicas.

No Museu Egípcio do Cairo é possível encontrar uma peruca toda trançada, do século 14 a.C., típica de oficiais de guerra.

Em 5 a.C., o historiador e geógrafo grego Heródoto elogiava a estética do povo que vivia ao redor do Nilo.

Existem registros de viajantes europeus que exploraram a África por volta de 1400 e relatavam, em seus diários e cartas, a beleza dos penteados de homens e mulheres nos diversos reinos.

Identidade

Em 3.550 a.C., sabe-se que o penteado era comumente utilizado como identificação das tribos na África Ocidental. As fulani, da tribo Fula, por exemplo, é caracterizada por tranças finas e têm, como diferencial, a coroa de tranças que se forma no topo da cabeça, semelhante a um coque. Já as tranças da tribo de Gana, começam finas e vão engrossando ao longo dos fios.

Cada região da África tinha seus penteados tradicionais e cada tribo sua estética particular, padrões complexos identificando status individual, idade, filiação étnica.

Nas mesmas tranças, ainda, se escondia ouro, mensagens, sementes de arroz, feijão e milho. Ou ainda utilizadas para todo mundo ver, aparentemente como um charme a mais no penteado. Mas só aparentemente, porque a intenção era utilizá-las na roça, plantar, cultivar para sobreviver.

Orgulho de ser negro

Um salto no tempo, século XX, década de 1960. A empresa de cosméticos Fuller Brush Company, dos Estados Unidos, lança uma linha de produtos de beleza que promete "embranquecer" a população negra e acabar com a discriminação. A resposta do movimento negro americano é Black is Beautiful.

As tranças não indicam mais rotas de fuga, mas se mantêm contando quem somos. O movimento desafia não só a empresa, mas todo o sistema de segregação racial americano da época, que não permitia sequer o uso dos mesmos bebedouros, banheiros e lugares no transporte público.

A comunidade negra saiu às ruas com seus cabelos naturais, black power, trançados, ostentando o orgulho de ser negro - uma ação em mão dupla, também para desconstruir o fascínio de mulheres negras pelo cabelo liso e a pele clara.

Alguns penteados eram utilizados apenas em cerimônias, como casamentos e ritos de passagem. A trança "Koju Soko", que significa "olhar para o marido", por exemplo, é usada para casamentos. Já a trança "Kolese" é ostentada em ocasiões fúnebres.

Historicamente, as tranças também serviam para informar religião, estado civil, posição social, transmitir sentimentos e enviar mensagens. Já adereços como conchas, anéis, miçangas, complementando o penteado, costumavam revelar a idade e também eram usados como amuletos.

Comunicação e fuga

O sistema de linguagem das tribos africanas, a partir das tranças, exerceu papel fundamental na comunicação entre os povos africanos escravizados no Brasil.

Aqui, a cultura africana, como todo o povo que veio do continente, recebeu a marca da "selvageria". Costumes, religiões, culinária... Tudo passou a ser discriminado, proibido, condenado, sufocado, desvalorizado. A somar-se, ainda, a crença da branquitude de nossa incapacidade intelectual.

É interessante pensar: nosso cabelo também foi desqualificado, mas "acomodado", "contido" em tranças, aparentemente, não representava perigo.

Assim, as tranças se tornaram o modo de contarmos de nossas dores e desejo de liberdade. Na Colômbia, as mulheres - anônimas na luta contra a escravidão -sinalizavam com seus penteados que queriam fugir e trançavam rotas de fuga para quilombos nas cabeças uma das outras. Usavam o estilo "departees" - tranças grossas e apertadas, rentes ao couro cabeludo. As tranças curvas representavam as estradas por onde iriam escapar.

Esse movimento se espalhou pelo mundo. Chegou no Brasil nos anos 1970 e inspirou Jorge Benjor a compor e cantar Negro é Lindo. E muitas de nós deixamos de alisar os cabelos. E muitos dos rapazes pararam de usar os cabelos rentes ao couro cabeludo.

Desafios entrelaçados

A transição para o século XXI representa outro divisor de águas na história das tranças. Em meados dos anos 2000, elas, as tranças, passam a dominar a cena, apesar de não "fazerem a cabeça" do ponto de vista da consciência racial. Viraram moda por sua praticidade, pelo leque de possibilidades, e ressignificam um de seus sentidos: se antes informavam sobre poder econômico, hoje garantem o ganha pão de muitas mulheres.

O princípio, a riqueza da cultura africana, embutida nas tranças, se perde com a massificação da escravidão, com o nascimento de escravizados no Brasil, o extermínio de diversas etnias... Mas as tranças não se perderam, ganharam novo significado, inspiraram o sentimento de pertença, o empreendedorismo e a desconstrução da ideia do cabelo negro como sinônimo de cabelo ruim. O melhor cabelo para se fazer tranças é o nosso.

A manipulação do cabelo continua a ser, para nós, uma forma de linguagem, um jeito de comunicar, de gritar, de ostentar, existir, de exigir respeito. É símbolo de luta por direitos, identidade e cidadania.

O que é nosso, é nosso

Vivemos, de novo, os anos 1960 e 1970, dos Panteras Negras, do pós Malcom X e Martin Luther King - líderes negros assassinados por lutarem por nossos direitos civis. Com ou sem apropriação cultural, nosso cabelo conta da nossa história e das nossas possibilidades.

Foto: Robério Braga

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